16 de agosto de 2011

Vício de Ti

É claro que depois fomos tomar café o momento no qual ele me contou que tinha ido ao consultório, não por causa de uma consulta, mas porque iria substituir a Tânia na recepção. Aparentemente ela estava grávida e eu nem tinha reparado.

Sentei-me à mesa pronta a escrever-lhe uma carta de resposta. O Frederico tinha ido visitar o irmão, que era dentista, que se encontrava em Lisboa e, mesmo assim, mandava-me uma carta por semana. Para quem estava fora da relação, como a Magda e a Luísa, a nossa relação parecia um sufoco.

«Sempre juntos, ufa!»

«Sempre com o raio da poesia do Mário de Sá-Carneiro na ponta da língua!»

Fazia ouvidos moucos e fingia que não ouvia. Sabia, secretamente, que elas também queriam uma relação assim. Que tivesse começado do nada e por uma incrível coincidência, como nos livros.

«Romance de literatura!» - diziam elas sempre que viam uma carta do Frederico em cima da mesa.

O que elas não sabiam, tecnicamente, era que eu e o Frederico ainda não namorávamos. Apenas trocávamos poesia juntos por termos esse gosto em comum. Não sei porquê, nem onde, o boato de que estávamos juntos tinha sido inventado. Mas, como que se quiséssemos alimentar essa chama indirectamente, nenhum de nós se chegava a frente pronto a desmentir. Porém, a verdade é que eu gostava mesmo desse rumor e de fazer transparecer que sim, que era verdade, que nós éramos feitos um para o outro.

Okay, isto realmente foi muito fílmico. Para falar verdade, eu gosto mesmo da minha relação com o Fred. Somos amigos, não com benefícios, mas que gostam da mesma coisa e quando estamos juntos, passamos muito tempo juntos, há sempre aquele ambiente de flirt no ar e que é tão bom de respirar antes de vermos a relação começar… E eu gosto tanto disso que não sei como desligar e passar à nova etapa. Cada vez mais acho que não sou é a única a gostar desse aspecto.

Olhei para a folha pautada e escrevi no centro:

Nada me expira já, nada me vive

Nem a tristeza nem as horas belas.

De as não ter e de nunca vir a tê-las,

Fartam-me até as coisas que não tive.

Além-Tédio do querido Mário. Porque acho que só ele, por vezes, nos entende.

Dobrei a folha em quatro e selei o envelope já preparado com selo. Quando me apercebi que ia receber cartas a um tempo ritmado…Preveni-me e comprei envelopes e selos para tempo suficiente. Um mês. O tempo que o Frederico demoraria a voltar para o Porto.

9 de agosto de 2011

Vício de Ti


*

Estava sentada há mais ou menos meia hora na sala de espera do consultório do dentista. Era uma espera relativamente normal, já que o Dr. Rocha era sempre muito meticuloso com todos os doentes o que, por vezes, duplicava o tempo da consulta. Tinha deixado em telemóvel em casa e, nesse dia, por incrível que pareça, não havia revistas nenhumas em cima da mesa de centro da sala de espera. E estava sozinha. Estava parada no meio das minhas divagações sobre o quanto odiava o cheiro a éter, quando fui interrompida por alguém que entrara na sala de espera. Era uma senhora com, mais ou menos, 45 anos.
«Boa tarde. Desculpe, aqui é que é o consultório do Dr. Rocha, certo?»

«Sim.» - respondi – «A Tânia não está aqui na recepção, está lá dentro. Mas, daqui a nada, deve estar aí.

Sorri.

«Obrigada, mas é que a consulta não é para mim, mas para o meu filho que está atrasado e eu vinha aqui guardar-lhe a vez. A que horas é a sua consulta?»

«16h30.»

«Ah, a do meu filho é às 16h.»

Fiquei ironicamente feliz com a notícia e sorri secamente. Já não bastava ter chegado antes da hora e ainda ia ter que esperar quase o triplo do tempo para um simples consulta dentária de rotina.

Estava entretida a ver o programa que passava na televisão quando a Tânia chegou à sala de espera.

«Mais dez minutos e convinha que o seu filho aqui estivesse.»

«Ele deve estar quase a chegar, não se preocupe.»

E piscou-me o olho.

Comecei a sentir-me desconfortável, odiava este tipo de situações. Para além de começar a ficar com vergonha alheia, estava a ficar nervosa com o atraso do rapaz porque não iria querer entrar primeiro caso ele não chegasse a tempo.

Quando a Tânia se estava a encaminhar para o consultório, a porta de entrada abriu-se e entrou um rapaz alto, blusão de cabedal, capacete no braço esquerdo e livro de poesia na mão direita.

«Desculpa mãe, atrasei-me na livraria.»

Sentou-se na minha frente e sorriu.

«Boa tarde!»

«Boa tarde.» - respondi e sorri.

Tentava apanhá-lo distraído para tentar ler quem era o autor do livro que tinha na mão, mas todas as minhas tentativas eram infrutíferas e tinha medo de que ele me apanhasse a tentar perceber qual era o livro. Estava na minha enésima tentativa quando ele me apanhou a olhar fixamente para o livro.

«Poesia, gostas?»

Tratou-me por tu e perguntou-me por poesia? Não conseguia de todo analisar o tipo de rapaz que tinha ali à minha frente e que, indirectamente, me cativava de certa forma.

«Ninguém pergunta se alguém gosta de poesia.» - sorri.

Riu.

«Pois não, pois não. Grande falha minha.»

Rimo-nos juntos.

«Mário de Sá-Carneiro, um dos meus poetas favoritos.»

Após ter dito isso, levantou-se e sentou-se ao meu lado. Tinha um post-it no livro a marcar uma página. E sem olhar para a página, disse:

«Eis o meu poema da semana:

Amor é chama que mata,

Dizem todos com razão,

É mal do coração

E com ele se endoidece.

O amor é um sorriso

Sorriso que desfalece.



Madeixa que se desata

Denominam-no também.

O amor não é um bem:

Quem ama sempre padece.

O amor é um perfume

Perfume que se esvaece.



Concordas com a minha escolha?»



Ainda espantada com o facto de me terem declamado um poema de Mário de Sá-Carneiro no meio de um consultório de um dentista, acenei afirmativamente com a cabeça sorrindo.


«Frederico Tiago Fonseca?» - chamou a Tânia.


Ainda estávamos a olhar um para o outro.


«Sim?»

Levantou-se.

 «Até já…»

«Maria Eduarda.»

«Até já, Maria Eduarda.» - e sorriu.



Nem dei pela mãe dele sair da sala de espera e voltei a ficar sozinha, até que reparei que ele tinha deixado o livro comigo.

Nem tinha passado um quarto de hora quando a Tânia já estava a chamar por mim. Cruzei-me com o Frederico no caminho para o consultório mas não trocamos mais nenhuma palavra, apenas sorrimos. Quando saí, reparei que estava um papel devidamente dobrado na cadeira onde tinha estado sentada.

Era o poema do Mário de Sá Carneiro. No verso da folha estava escrito não só o número de telemóvel, mas também uma pequena mensagem:



«Não sou um dandy, apesar do João da Ega ser dos meus personagens favoritos d’Os Maias. No entanto, gostava imenso de  levar a Maria Eduarda a tomar um chá. Como Eça de Queirós escreveria.



Frederico. »





*

2 de agosto de 2011

Vício de Ti

Capítulo I

Abri aquela carta com toda a veemência com que tinha aberto todas as outras, Parecia que tinha uma sede inesgotável de saber o que se passava com ele. E consumia todas aquelas palavras que ele me escrevia uma e outra vez, fingindo que ele se encontrava ali ao meu lado a sussurrar-me a carta aos meus ouvidos. Assim estilo Pearl Harbour, quando a Evelyn e o Rafe trocam cartas de amor, Filme que repete cerca de duas vezes por ano. Uma delas há-de calhar sempre no Natal.

O papel desta carta era, no entanto, diferente do habitual. O Frederico sempre me tinha habituado a um papel extremamente branco, não transparente, e extraordinariamente sedoso e aquele que tinha agora nas mãos era, para além de rugoso, amarelado e duro. Não sei como havia ele conseguido dobrar aquilo para dentro de um envelope. Rapidamente percebi que a diferença do papel tinha tudo a ver com a mensagem que este trazia. Um poema de Mário de Sá-Carneiro.



Que rosas fugitivas foste ali:

Requeriam-te os tapetes – e vieste...

– Se me dói hoje o bem que me fizeste,

É justo, porque muito te devi.



Em que seda de afagos me envolvi

Quando entraste, nas tardes que apareceste –

Como fui de percal quando me deste

Tua boca a beijar, que remordi...



Pensei que fosse o meu o teu cansaço –

Que seria entre nós um longo abraço

O tédio que, tão esbelta, te curvava...



E fugiste... Que importa ? Se deixaste

A lembrança violeta que animaste,

Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Roubei ao Mário de Sá Carneiro as palavras, mas a minha paixão por ti ninguém trava ou rouba.

Teu,

Frederico.

Abracei a carta como se tratasse do Frederico ali comigo e foi aí que percebi que também a carta vinha empregnada com o cheiro dele misturado com o éter do consultório do dentista onde estava agora a trabalhar. Nunca gostei do cheiro do éter, até agora, em que me fazia lembrar a primeira vez em que nos vimos.

31 de maio de 2011

24 de maio de 2011

ACTO III

Cena Um


As luzes estão apagadas em ambos cenários. Lentamente, numa luz fraca, Carlos aparece no cenário do lado direito respectivo à sua personagem e à de Luísa. Ao mesmo tempo em que começa a acariciar o seu rosto, uma luz surge no cenário da esquerda. Começa-se por ver um corpo, o corpo de Luísa, mas na frente do seu corpo, de frente para o público surge uma nova silhueta. É o corpo de Francisca que permanece de olhos fechados, mas que se deixa ser seduzida pelas mãos de Luísa. À medida que as mãos de Luísa acariciam o corpo de Francisca, no outro cenário, Carlos, acaricia o seu corpo. A luz deve ficar cada vez mais forte. Quando se intensificar de tal maneira que provoque o público, Francisca deve gritar prazerosamente. Deixa-se cair no cenário com Luísa ambas a respirar afogueadamente. Carlos deve encarar o público até que a luz no seu cenário se apague.


Luz.

17 de maio de 2011

ACTO II

Cena Cinco

[cont.]


Francisca: Não. Carlos, você é o marido da Luísa, e eu gosto demasiado da Luísa para ceder aos seus jogos.

Luísa: Não. Tomé, você é o namorado da Francisca, e eu gosto demasiado dela para ceder aos seus jogos.

Carlos: Pois. Ela também gosta demasiado de si. É por isso que estou aqui.

Tomé: É, ela também gosta muito do seu marido. É por isso que estou aqui.

Luísa: Não entendi o que quis dizer.

Francisca: Não entendi o que quis dizer.

Tomé: Está sozinha?

Carlos: Está sozinha?

Luísa e Francisca não respondem, tentam fugir. Carlos e Tomé avançam sobre elas e, apesar de renitentes ao inicio, Luísa e Francisca acabam por beijá-los também.

Porém, enquanto Luísa tenta levar Tomé para a porta, para o expulsar, Francisca cede ao jogo de Carlos e deita-se calmamente no sofá, como que o seduzindo. Neste cenário a luz vai baixando, ouvindo-se apenas breves respirares mais profundos.

No cenário de Luísa e Tomé intensifica-se uma espécie de luta.

Tomé: Ah! Mordeu-me o lábio!

Luísa bate no rosto de Tomé.

Luísa: Como se atreve? Como se atreve a vir aqui e beijar-me? Sem me conhecer de lado nenhum?

Tomé: Vai dizer que não gostou?

Luísa: NÃO, NÃO GOSTEI.

Empura continuamente o corpo de Tomé para a porta.

Luísa: Vá-se embora de minha casa!

Tomé (malicioso, tentando agarrá-la à força): Não quer que eu fique? Olhe que posso ser o seu boy toy.

Luísa: Largue-me. Você deve estar sob efeito de drogas e não preciso de um boy toy.

Tomé (rindo-se maliciosamente e agarrando Luísa): É porque não precisa, não. Esses quarenta anos devem lhe pesar em cima, e já não deve ter festa há muito tempo.

Luísa (num empurrão só, leva a que Tomé saia e caia perante a sua porta): Tenho pena que a Francisca não saiba o porco que você é. (cospe)

Tomé: Deve julgar-se melhor que eu, não? Julga que não percebi as indirectas que lhe manda nos textos que pede para que ela reveja? Você deseja-lhe o corpo, aquele corpo que eu já possuí. Mas ela é uma sonsa, Luísa. E se a quer levar pra cama… Tem de lhe dizer na cara.

Luísa fecha a porta com estrondo. Ouve-se, ainda, a voz de Tomé.

Tomé: Mas, descanse, Luísa, que o seu segredo morre comigo. Ah! E vá em frente, tenho a certeza que a Francisca ia adorar que você a comesse.



Luísa (caída no chão): Porco, os homens são todos uns porcos (agarra o seu telemóvel).

 O telemóvel de Francisca, no outro lado, toca. Uma luz fraca ilumina o cenário.

Francisca: Sim, Luísa?

Carlos beija-lhe o pescoço.

Luísa: Preciso de si. Imediatamente.


Luz.

26 de abril de 2011

ACTO II

Cena Cinco
Luísa e Francisca devem levantar-se do chão ao mesmo tempo. Luísa veste-se e compõe-se. Francisca deve imitar os mesmos movimentos. Devem estar viradas uma para outra, como se olhassem para um espelho. O telemóvel de Francisca toca. Enquanto ela se levanta para o ir buscar, Luísa deve, lentamente, colocar-se em posição fetal.

Francisca: Estou? Carlos? Sim, sim estou em casa, mas passa-se algo com a Luísa? Traz-me uns textos? Sim, sim, pode trazê-los cá. (pausa) Sim, sim, é essa a morada, sim.
Luz.
Após o palco ficar em plena escuridão, devem ligar-se pequenos focos: um em Luísa (ainda em posição fetal) e outro em Francisca (que deverá estar em pé, a olhar o público)
Francisca: Confesso-vos: há muito tempo que já só via o Tomé como um amigo. Bom, nem é assim há tanto tempo, mas desde que conheci o Carlos. Desde que ele me tocou e eu senti aquelas borboletas na barriga. E foi aquele toque, tão simples, que libertou tudo isto em mim. Mas, mas depois lembro-me da Luísa e de como lhe devia ser fiel. Porque ela abriu-me uma porta para o seu mundo interior, mostrar-me os seus textos? É dar a chave e a porta para entrar na sua mente. Ainda não sei o que a faz ser uma escritora fenomenal. Incrivelmente, quando a leio, também sinto…. Também sinto borboletas na barriga.
As campainhas tocam. Francisca estremece. Luísa levanta-se num pulo. Correm ambas para a entrada. Respiram e abrem a porta. Toda a acção seguinte deve acontecer ao mesmo tempo nos dois cenários:
Francisca: Carlos!
Luísa: Sim?
Carlos: Posso?
Francisca: Claro, claro.
Tomé: Surpreendida por me ver, Luísa?
Luísa: Sim, por completo, tendo em conta que nem sei quem é. Como sabe o meu nome?
Tomé: Sou o Tomé, EX - namorado da Francisca. Ela falou-me muito de si.
Francisca: Não trazia uns textos para mim?
Luísa: Da Francisca? (pausa) Traz textos para mim? (pausa) Ex, ex-namorado, foi o que disse?
Carlos: Perdoe-me Francisca, mas isso foi apenas uma desculpa que usei para a ver. É que eu, bom, sabe, eu não deixei de pensar em si desde que tivemos aquele momento.
Tomé: Perdoe-me Luísa, mas isso foi apenas uma desculpa que usei para a ver. É que eu, bom, sabe, eu não deixei de pensar em sim desde que a Francisca me falou de como era bela.
Francisca e Carlos olham-se e quando Carlos a tenta beijar, Francisca afasta-se. O mesmo acontece com Luísa e Tomé.

[cont.]

19 de abril de 2011

ACTO II

Cena Quatro

[cont.]

Tomé deixa o apartamento. Deverá levar alguma coisa consigo como malas ou uma mochila. Francisca fica em pé encarando o público enquanto Tomé se demora a olhá-la na porta. No outro lado, Carlos e Luísa estão estáticos, encarando-se. Lentamente, assim que Francisca iniciar a sua fala, Luísa deverá começar a despir-se, insinuando-se no corpo de Carlos.
Francisca: Nua, dispo-me de ti. Sem qualquer tabu, pudor ou preconceito. Lentamente… Lentamente o teu cheiro larga a minha pele e a saudade enche o meu peito. (Francisca deve também começar a tocar-se pelo seu corpo, como se se estivesse a conhecer pela primeira vez, sempre encarando o público) De regras fui feita. Em sonhos construí uma vida. Eu acreditei em ti, minha alma perdida. Eu (pausa) acreditei (pausa) em ti (pausa prolongada). Minha alma perdida.
Assim que Francisca pronunciar as últimas palavras, Carlos deverá colocar Luísa, estrondosamente, em cima da mesa do cenário. Entre eles deve iniciar-se uma espécie de dança corporal que incita ao sexo. Deve ouvir-se uma música. Enquanto a música toca, Francisca deve continuar a tocar-se e assim que se deitar no chão deve colocar as mãos sob o sexo. A luz dever-se-á apagar no cenário de Francisca.
A música pára abruptamente. Carlos e Luísa entreolham-se e continuam a beijar-se.Carlos segura Luísa no colo e suspira-lhe o nome. Luísa beija-o ternamente no pescoço e aproximando-se para o beijar, sussurra:
Luísa: Francisca…

Carlos larga Luísa que deverá cair abruptamente no chão, sentindo-se humilhada. Carlos fixa-a e cospe para o chão. Apanha as suas roupas e sai.


Luz.

12 de abril de 2011

ACTO II

Cena Quatro

Quando a luz se vai ligando lentamente, Francisca e Tomé e  Luísa e Carlos, estão nos seus cenários respectivos. Tomé e Francisca sentados no sofá, Luísa e Carlos à mesa. Todos estão com o seu rosto compenetrado como se o ambiente fosse tenso e de cortar à faca.

Francisca: Bom.. (pausa)
Carlos: Bom… (pausa.)
Tomé e Luísa (em uníssono): Nesta situação não podemos ficar mais. Quero viver, quero sentir o sangue a fervilhar-me nas veias. Quero sentir-me…jovem.
Francisca: Tu tens 25 anos, Tomé. Desde que te conheço que me falas em criar uma família, em vivermos juntos, que era isto que tu querias da vida. Uma família.
Carlos: Pensava que querias uma família, Luísa.
Luísa e Tomé (em uníssono): Isto. ISTO. (batem com o punho na mesa) não é o raio de uma família. Não a família que imaginei.
Francisca e Carlos (pausa prolongada através de um suspiro longo): Não consigo perceber. NISTO, como tu dizes, eu é que podia ter razão de queixa. Tu, tu ignoras-me, brincas comigo como se um trapo eu fosse, tratas-me como produto garantido. E eu, eu deixo-me passar por burra(o) e jogo contigo esse teu jogo de sentimentos do qual as regras não me mostraste.
Francisca e Tomé olham-se longamente. Luísa e Carlos viram as costas um para o outro.
Francisca: Tomé. (continuam a olhar-se) Tu estás apaixonado por alguém?
Tomé: Tu és a menina dos meus olhos, mas eu quero ver o mundo.
Francisca e Luísa: Eu devia ser o teu mundo.
Tomé e Carlos: Mas não és a minha vida.

[continua]

5 de abril de 2011

ACTO II

Cena Três

Francisca está no seu apartamento, sentada, a olhar para o vazio. Suspira de vez em quando, assobia, mexe-se como se sentisse desconfortável. Mexe no cabelo, anda pelo cenário, até que se deita no sofá. Olha constantemente para o telemóvel.
Para o público:
Francisca: Eu gosto muito dele, a sério. Quer dizer… Se eu não gostasse tanto dele, aguentaria eu esta espera louca que ele provoca? Este não responder a mensagens ou a chamadas apenas para dizer que está vivo? Não, ele não está com outra mulher. (pausa) Não está, e eu sei, porque o Tomé sempre prezou a fidelidade. Eu nunca o traí. Nunca. (pausa longa.) Mas quando o Carlos me segurou na mão como um verdadeiro cavalheiro tenho de vos confessar que um ligeiro arrepio me arrefeceu o corpo todo. Tenho de confessar que, por momentos, não sei… O Tomé, eu… Eu sei que não consigo viver sem ele, mas também sei que sinto isto porque de certa forma estou como que viciada nele. No seu cabelo, no seu corpo, no seu cheiro. Mas sinto que ele não pensa o mesmo e que me toma como garantida.
Tomé entra.
Tomé: Francisca, eu… eu…
Francisca roda lentamente sobre si, atónita.
Tomé: Francisca, eu não consigo mais. Eu vou sair de casa.
 Francisca e Tomé olham intensamente um para o outro, correm e abraçam-se. Beijam-se até que a luz se apague.

Luz.

29 de março de 2011

ACTO II

Cena Dois

Quando Francisca termina de ler o texto anterior, a luz deverá enfraquecer até que Luísa e Carlos entrem no cenário. Estão ambos silenciosos e Francisca, atrapalhada, tenta arrumar rapidamente as folhas.

Luísa: Francisca, ainda aqui está?
Francisca: Sim, Luísa, estava um pouco perdida nesta arrumação final… Mas acho que já está. (sorri timidamente enquanto lhe entrega as folhas.)
Luísa: Ah, Francisca, já agora: este é o meu marido, Carlos. Carlos, esta é a Francisca. (perante a cara de espanto do marido como nunca tivesse ouvido falar de Francisca, Luísa pressiona) Já te tinha falado, lembras-te?
Carlos (fingindo): Sim, sim. Perfeitamente! Prazer. (senta-se na mesa a ler o jornal sem nunca olhar para Francisca).
Francisca (impávida): Bom, eu vou só colocar isto lá dentro e depois vou-me embora, sim?
Luísa: Não, Francisca, deixe estar que eu guardo. Tenho de ir lá dentro para guardar o meu casaco, mas volto já para me despedir de si.
Agarra nas folhas e repara na primeira folha – que deverá ser o texto que Francisca leu anteriormente. Luísa deve ficar em palco alguns segundos olhando o texto e Francisca deverá estar com o seu olhar fixado em Luísa. Carlos permanecerá, sereno, a ler o jornal, alheio. Luísa sai. Francisca senta-se. Tosse para se sentir mais confortável.
Carlos: Hum, já viu isto, Rita?
Francisca (gaguejando): É..É Francisca.
Carlos (ignorando e lendo o título da notícia): “Jovem de 20 anos comete suícidio e deixa bilhete a explicar as razões do acto.” O que acha que leva uma jovem a perpetrar tal atrocidade? (continua a encarar o jornal)
Francisca: Solidão, talvez.
(Carlos não responde, continua a ler o jornal.)
Francisca: Eu sinto-me sozinha. Não todos os dias, mas em certos momentos da minha vida. E isso acaba comigo, porque parece que se esquecem de mim. Parece, não, esquecem, mesmo. Pergunto-me se serei uma pessoa fácil de esquecer, se tudo o que faço, ou digo, não tem qualquer importância e que seja fácil de apagar ao mínimo piscar de olhos. Não consigo não questionar a atitude dessa rapariga. Já muitas foram as vezes em que pela rua andei e a tentativa de atravessar a rua quando os carros passam velozes, me pareceu saborosa. Só para saber se… Se morresse, se haveria alguém que perguntaria por mim no dia seguinte.
Pela primeira vez Carlos deverá enfrentar Francisca nos olhos. Deverão entreolhar-se criando uma fina tensão entre ambos. Carlos, lentamente, colocar-lhe-á a mão em cima da sua e deverá apertá-la com sentimento. Lentamente deverá aproximar-se dela, sem nunca se levantar da cadeira, e levará a mão de Francisca aos seus lábios, demorando-se num beijo dedicado. Deixa que a mão de Francisca caia suavemente sobre a mesa e retira-se. Francisca permanece silenciosa, respirando fundo, agarrando a mão. Fecha os olhos e abre-os lentamente. Luísa entra em palco trazendo na mão um pedaço de papel amarrotado.
Luísa: Francisca pode ir, muito obrigada. Até amanhã!
Francisca: Obrigada, Luísa. Amanhã à mesma hora, certo? Até amanhã.
 Agarra nas suas coisas, mas nota-se que está nervosa. Sai. Carlos entra em palco com um copo de whisky, senta-se na mesa de novo. Luísa segura o papel que traz depois de o ter desembrulhado. Encara o público:
Luísa: Porto, 1997.  Sei perfeitamente quando o perdi, quando o seu sorriso deixou de ter a sua luz tão própria. E recrimino-me por saber. Mulher que ama não decora quando o seu marido deixou de a amar, recorda o dia em que ele a amou pela primeira vez. Eu sempre fui do contra. Sempre. Contra. Contra regras que me ditaram desde pequena, contra direcções, contra leis. Contra-Natura. E ele deixou de me amar quando, numa noite em que fazíamos de amor, gritei o nome dela. E não o dele.


Luz.

22 de março de 2011

ACTO II

Cena Um

Francisca está sentada no cenário correspondente ao apartamento de Luísa e, na mesa, estão colocadas várias folhas que tenta organizar. No entanto, apesar deste movimento mecânico há uma folha que acaba por lhe prender a atenção. Segura na mesma durante algum tempo e lê:

Francisca:  Quando gostamos de alguém, nós damos o braço, o coração a torcer. Tudo sem que a pessoa se aperceba. E nós vamos, devagarinho, aceitando os murros no estômago ou as palmadas invisíveis que elas nos dão. Oferecemos a face, o corpo, em prol de um amor. De um fio condutor de uma vida que nos uniu. E cada ignorar, a cada esquecimento da nossa existência, repetimos num fôlego de pensamento, como mantra, que no fundo ainda há uma réstia de esperança que nos une. E que embora as pessoas que nós amamos, e sem as quais conseguimos viver, sejam capazes de viver sem nós, temos de nos habituar a viver sem as mesmas.

Ámen.


Porto, 1997



Francisca fica parada a olhar o público enquanto a luz se vai enfraquecendo até apagar.