29 de março de 2011

ACTO II

Cena Dois

Quando Francisca termina de ler o texto anterior, a luz deverá enfraquecer até que Luísa e Carlos entrem no cenário. Estão ambos silenciosos e Francisca, atrapalhada, tenta arrumar rapidamente as folhas.

Luísa: Francisca, ainda aqui está?
Francisca: Sim, Luísa, estava um pouco perdida nesta arrumação final… Mas acho que já está. (sorri timidamente enquanto lhe entrega as folhas.)
Luísa: Ah, Francisca, já agora: este é o meu marido, Carlos. Carlos, esta é a Francisca. (perante a cara de espanto do marido como nunca tivesse ouvido falar de Francisca, Luísa pressiona) Já te tinha falado, lembras-te?
Carlos (fingindo): Sim, sim. Perfeitamente! Prazer. (senta-se na mesa a ler o jornal sem nunca olhar para Francisca).
Francisca (impávida): Bom, eu vou só colocar isto lá dentro e depois vou-me embora, sim?
Luísa: Não, Francisca, deixe estar que eu guardo. Tenho de ir lá dentro para guardar o meu casaco, mas volto já para me despedir de si.
Agarra nas folhas e repara na primeira folha – que deverá ser o texto que Francisca leu anteriormente. Luísa deve ficar em palco alguns segundos olhando o texto e Francisca deverá estar com o seu olhar fixado em Luísa. Carlos permanecerá, sereno, a ler o jornal, alheio. Luísa sai. Francisca senta-se. Tosse para se sentir mais confortável.
Carlos: Hum, já viu isto, Rita?
Francisca (gaguejando): É..É Francisca.
Carlos (ignorando e lendo o título da notícia): “Jovem de 20 anos comete suícidio e deixa bilhete a explicar as razões do acto.” O que acha que leva uma jovem a perpetrar tal atrocidade? (continua a encarar o jornal)
Francisca: Solidão, talvez.
(Carlos não responde, continua a ler o jornal.)
Francisca: Eu sinto-me sozinha. Não todos os dias, mas em certos momentos da minha vida. E isso acaba comigo, porque parece que se esquecem de mim. Parece, não, esquecem, mesmo. Pergunto-me se serei uma pessoa fácil de esquecer, se tudo o que faço, ou digo, não tem qualquer importância e que seja fácil de apagar ao mínimo piscar de olhos. Não consigo não questionar a atitude dessa rapariga. Já muitas foram as vezes em que pela rua andei e a tentativa de atravessar a rua quando os carros passam velozes, me pareceu saborosa. Só para saber se… Se morresse, se haveria alguém que perguntaria por mim no dia seguinte.
Pela primeira vez Carlos deverá enfrentar Francisca nos olhos. Deverão entreolhar-se criando uma fina tensão entre ambos. Carlos, lentamente, colocar-lhe-á a mão em cima da sua e deverá apertá-la com sentimento. Lentamente deverá aproximar-se dela, sem nunca se levantar da cadeira, e levará a mão de Francisca aos seus lábios, demorando-se num beijo dedicado. Deixa que a mão de Francisca caia suavemente sobre a mesa e retira-se. Francisca permanece silenciosa, respirando fundo, agarrando a mão. Fecha os olhos e abre-os lentamente. Luísa entra em palco trazendo na mão um pedaço de papel amarrotado.
Luísa: Francisca pode ir, muito obrigada. Até amanhã!
Francisca: Obrigada, Luísa. Amanhã à mesma hora, certo? Até amanhã.
 Agarra nas suas coisas, mas nota-se que está nervosa. Sai. Carlos entra em palco com um copo de whisky, senta-se na mesa de novo. Luísa segura o papel que traz depois de o ter desembrulhado. Encara o público:
Luísa: Porto, 1997.  Sei perfeitamente quando o perdi, quando o seu sorriso deixou de ter a sua luz tão própria. E recrimino-me por saber. Mulher que ama não decora quando o seu marido deixou de a amar, recorda o dia em que ele a amou pela primeira vez. Eu sempre fui do contra. Sempre. Contra. Contra regras que me ditaram desde pequena, contra direcções, contra leis. Contra-Natura. E ele deixou de me amar quando, numa noite em que fazíamos de amor, gritei o nome dela. E não o dele.


Luz.

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