16 de agosto de 2011

Vício de Ti

É claro que depois fomos tomar café o momento no qual ele me contou que tinha ido ao consultório, não por causa de uma consulta, mas porque iria substituir a Tânia na recepção. Aparentemente ela estava grávida e eu nem tinha reparado.

Sentei-me à mesa pronta a escrever-lhe uma carta de resposta. O Frederico tinha ido visitar o irmão, que era dentista, que se encontrava em Lisboa e, mesmo assim, mandava-me uma carta por semana. Para quem estava fora da relação, como a Magda e a Luísa, a nossa relação parecia um sufoco.

«Sempre juntos, ufa!»

«Sempre com o raio da poesia do Mário de Sá-Carneiro na ponta da língua!»

Fazia ouvidos moucos e fingia que não ouvia. Sabia, secretamente, que elas também queriam uma relação assim. Que tivesse começado do nada e por uma incrível coincidência, como nos livros.

«Romance de literatura!» - diziam elas sempre que viam uma carta do Frederico em cima da mesa.

O que elas não sabiam, tecnicamente, era que eu e o Frederico ainda não namorávamos. Apenas trocávamos poesia juntos por termos esse gosto em comum. Não sei porquê, nem onde, o boato de que estávamos juntos tinha sido inventado. Mas, como que se quiséssemos alimentar essa chama indirectamente, nenhum de nós se chegava a frente pronto a desmentir. Porém, a verdade é que eu gostava mesmo desse rumor e de fazer transparecer que sim, que era verdade, que nós éramos feitos um para o outro.

Okay, isto realmente foi muito fílmico. Para falar verdade, eu gosto mesmo da minha relação com o Fred. Somos amigos, não com benefícios, mas que gostam da mesma coisa e quando estamos juntos, passamos muito tempo juntos, há sempre aquele ambiente de flirt no ar e que é tão bom de respirar antes de vermos a relação começar… E eu gosto tanto disso que não sei como desligar e passar à nova etapa. Cada vez mais acho que não sou é a única a gostar desse aspecto.

Olhei para a folha pautada e escrevi no centro:

Nada me expira já, nada me vive

Nem a tristeza nem as horas belas.

De as não ter e de nunca vir a tê-las,

Fartam-me até as coisas que não tive.

Além-Tédio do querido Mário. Porque acho que só ele, por vezes, nos entende.

Dobrei a folha em quatro e selei o envelope já preparado com selo. Quando me apercebi que ia receber cartas a um tempo ritmado…Preveni-me e comprei envelopes e selos para tempo suficiente. Um mês. O tempo que o Frederico demoraria a voltar para o Porto.

9 de agosto de 2011

Vício de Ti


*

Estava sentada há mais ou menos meia hora na sala de espera do consultório do dentista. Era uma espera relativamente normal, já que o Dr. Rocha era sempre muito meticuloso com todos os doentes o que, por vezes, duplicava o tempo da consulta. Tinha deixado em telemóvel em casa e, nesse dia, por incrível que pareça, não havia revistas nenhumas em cima da mesa de centro da sala de espera. E estava sozinha. Estava parada no meio das minhas divagações sobre o quanto odiava o cheiro a éter, quando fui interrompida por alguém que entrara na sala de espera. Era uma senhora com, mais ou menos, 45 anos.
«Boa tarde. Desculpe, aqui é que é o consultório do Dr. Rocha, certo?»

«Sim.» - respondi – «A Tânia não está aqui na recepção, está lá dentro. Mas, daqui a nada, deve estar aí.

Sorri.

«Obrigada, mas é que a consulta não é para mim, mas para o meu filho que está atrasado e eu vinha aqui guardar-lhe a vez. A que horas é a sua consulta?»

«16h30.»

«Ah, a do meu filho é às 16h.»

Fiquei ironicamente feliz com a notícia e sorri secamente. Já não bastava ter chegado antes da hora e ainda ia ter que esperar quase o triplo do tempo para um simples consulta dentária de rotina.

Estava entretida a ver o programa que passava na televisão quando a Tânia chegou à sala de espera.

«Mais dez minutos e convinha que o seu filho aqui estivesse.»

«Ele deve estar quase a chegar, não se preocupe.»

E piscou-me o olho.

Comecei a sentir-me desconfortável, odiava este tipo de situações. Para além de começar a ficar com vergonha alheia, estava a ficar nervosa com o atraso do rapaz porque não iria querer entrar primeiro caso ele não chegasse a tempo.

Quando a Tânia se estava a encaminhar para o consultório, a porta de entrada abriu-se e entrou um rapaz alto, blusão de cabedal, capacete no braço esquerdo e livro de poesia na mão direita.

«Desculpa mãe, atrasei-me na livraria.»

Sentou-se na minha frente e sorriu.

«Boa tarde!»

«Boa tarde.» - respondi e sorri.

Tentava apanhá-lo distraído para tentar ler quem era o autor do livro que tinha na mão, mas todas as minhas tentativas eram infrutíferas e tinha medo de que ele me apanhasse a tentar perceber qual era o livro. Estava na minha enésima tentativa quando ele me apanhou a olhar fixamente para o livro.

«Poesia, gostas?»

Tratou-me por tu e perguntou-me por poesia? Não conseguia de todo analisar o tipo de rapaz que tinha ali à minha frente e que, indirectamente, me cativava de certa forma.

«Ninguém pergunta se alguém gosta de poesia.» - sorri.

Riu.

«Pois não, pois não. Grande falha minha.»

Rimo-nos juntos.

«Mário de Sá-Carneiro, um dos meus poetas favoritos.»

Após ter dito isso, levantou-se e sentou-se ao meu lado. Tinha um post-it no livro a marcar uma página. E sem olhar para a página, disse:

«Eis o meu poema da semana:

Amor é chama que mata,

Dizem todos com razão,

É mal do coração

E com ele se endoidece.

O amor é um sorriso

Sorriso que desfalece.



Madeixa que se desata

Denominam-no também.

O amor não é um bem:

Quem ama sempre padece.

O amor é um perfume

Perfume que se esvaece.



Concordas com a minha escolha?»



Ainda espantada com o facto de me terem declamado um poema de Mário de Sá-Carneiro no meio de um consultório de um dentista, acenei afirmativamente com a cabeça sorrindo.


«Frederico Tiago Fonseca?» - chamou a Tânia.


Ainda estávamos a olhar um para o outro.


«Sim?»

Levantou-se.

 «Até já…»

«Maria Eduarda.»

«Até já, Maria Eduarda.» - e sorriu.



Nem dei pela mãe dele sair da sala de espera e voltei a ficar sozinha, até que reparei que ele tinha deixado o livro comigo.

Nem tinha passado um quarto de hora quando a Tânia já estava a chamar por mim. Cruzei-me com o Frederico no caminho para o consultório mas não trocamos mais nenhuma palavra, apenas sorrimos. Quando saí, reparei que estava um papel devidamente dobrado na cadeira onde tinha estado sentada.

Era o poema do Mário de Sá Carneiro. No verso da folha estava escrito não só o número de telemóvel, mas também uma pequena mensagem:



«Não sou um dandy, apesar do João da Ega ser dos meus personagens favoritos d’Os Maias. No entanto, gostava imenso de  levar a Maria Eduarda a tomar um chá. Como Eça de Queirós escreveria.



Frederico. »





*

2 de agosto de 2011

Vício de Ti

Capítulo I

Abri aquela carta com toda a veemência com que tinha aberto todas as outras, Parecia que tinha uma sede inesgotável de saber o que se passava com ele. E consumia todas aquelas palavras que ele me escrevia uma e outra vez, fingindo que ele se encontrava ali ao meu lado a sussurrar-me a carta aos meus ouvidos. Assim estilo Pearl Harbour, quando a Evelyn e o Rafe trocam cartas de amor, Filme que repete cerca de duas vezes por ano. Uma delas há-de calhar sempre no Natal.

O papel desta carta era, no entanto, diferente do habitual. O Frederico sempre me tinha habituado a um papel extremamente branco, não transparente, e extraordinariamente sedoso e aquele que tinha agora nas mãos era, para além de rugoso, amarelado e duro. Não sei como havia ele conseguido dobrar aquilo para dentro de um envelope. Rapidamente percebi que a diferença do papel tinha tudo a ver com a mensagem que este trazia. Um poema de Mário de Sá-Carneiro.



Que rosas fugitivas foste ali:

Requeriam-te os tapetes – e vieste...

– Se me dói hoje o bem que me fizeste,

É justo, porque muito te devi.



Em que seda de afagos me envolvi

Quando entraste, nas tardes que apareceste –

Como fui de percal quando me deste

Tua boca a beijar, que remordi...



Pensei que fosse o meu o teu cansaço –

Que seria entre nós um longo abraço

O tédio que, tão esbelta, te curvava...



E fugiste... Que importa ? Se deixaste

A lembrança violeta que animaste,

Onde a minha saudade a Cor se trava?...

Roubei ao Mário de Sá Carneiro as palavras, mas a minha paixão por ti ninguém trava ou rouba.

Teu,

Frederico.

Abracei a carta como se tratasse do Frederico ali comigo e foi aí que percebi que também a carta vinha empregnada com o cheiro dele misturado com o éter do consultório do dentista onde estava agora a trabalhar. Nunca gostei do cheiro do éter, até agora, em que me fazia lembrar a primeira vez em que nos vimos.